Açor de Estrelas - AzimuTTe Zero

Ir para o conteúdo

Menu principal:

Açor de Estrelas

Todo-o-Terreno
AzimuTTe: Açor de Estrelas

10/11 de Fevereiro de 2024
 
    Sábado.
    Cá fora, céus pincelados em tonalidades de cinzento, vertendo água no ar frio da manhã.
    Lá dentro, mais escuro, ainda. De preto estão decoradas as paredes e os textos e as ilustrações nelas gravadas a luz encontram-se velados por véus escuros, como se de um velório se tratasse. Faz sentido, pois encontramo-nos no Núcleo Museológico de Arqueologia de Arganil e o que vemos e sobre o que aprendemos já viveu há muito. Assim se inicia a mística que nos acompanhará todo o dia.
    No piso superior, no Núcleo Museológico Etnográfico, mais iluminado, os vários ofícios documentados indiciam outras tantas vidas de outrora.
     De volta ao exterior, o cenário mantém-se. Pegamos nas viaturas e vamo-las pintando de lama, prenúncio do que estará para vir, a caminho do nosso destino imediato, a Igreja do Mosteiro de São Pedro de Folques. Nela, travamos conhecimento com o Santo Goldrofe, nome inédito na nossa hagiologia e de conotação tão mística quanto os seus supostos feitos ou papel activo (não lhes chamaremos milagres por falta de competência nossa para tal) num extenso rol de ocorrências que nos são relatadas pelo dedicado guardião e depositário da memória da igreja.
   Retomamos o caminho e tomamos o verdadeiro pulso aos trilhos da Serra do Açor, ganhando altura nos primeiros cumes que atacamos, com a ajuda das redutoras. Lá em cima, o nosso olhar sustém-se, por um momento, na distância de vista que se alcança, para logo se despenhar no fundo dos vales.
   As chuvas recentes fizeram engrossar os muitos fios de água que pululam nesta serrania, acrescentando movimento e som à fragosidade das encostas, pelas quais vamos deslizando, em movimentos de cobra, até à vila de Benfeita, que faz jus ao topónimo de tão bem cuidada que se encontra. Nela, a Torre da Paz. Construída em 1945 por Mário Mathias, um ilustre benfeitense, com a intenção de fazer tocar o sino quando fosse assinalado o fim da Segunda Guerra Mundial. E o sino tocou, às 14h, do dia 7 de Maio de 1945. Como gostaríamos de o fazer tocar amiúde, assinalando o final dos vários conflitos que vão grassando, por estupidez de uns quantos, por este mundo fora. Melhor, ainda. Nem ser necessário ele soar.
     A cascata da Fraga da Pena, visitada no Verão, é um local aprazível de refrescante beleza. Não, agora! A beleza é outra. A torrente impõe respeito, pela velocidade e quantidade de água que despeja. Vazio de mais visitantes, subimos o caminho em contracorrente, como se salmões fôssemos. O ruído e a humidade vão aumentando, aumentando, na mesma medida, a nossa expectativa. O arvoredo, cerrado, antigo e musgoso; o lajedo, estreito, irregular e resvaladiço, ambos criam o cenário e induzem o estado de espírito perfeito. E lá está ela! Em toda a sua pureza. Em toda a sua beleza. Jorrando, farta, lá do cimo, fraga abaixo, com um ímpeto impossível de suster. E nós, em contemplação, sem palavras. O sentimento comum, de volta aos carros, era de que tínhamos lá estado na época certa.
      Um caminho descarnado, dando trabalho extra às suspensões e condutores, conduz-nos a outros cumes, onde nos acolhem as nuvens. No seio delas, as escovas dos limpa-pára-brisas, numa cadência lenta, vão abrindo curta visibilidade na humidade que será chuva lá mais em baixo. A espaços, somos sobressaltados por vislumbres das enormes pás dos aerogeradores, que rasgam a névoa, bem perto de nós, na sua rotação monótona e indiferente ao que se passa a seus pés.
     E vimos, finalmente, a Aldeia Histórica de Piódão, do local de onde se despediu dela Miguel Torga. O momento convoca o respeito por esse grande escritor.
    Piódão espraia-se encosta acima, numa sinfonia de dois tons: azul das ombreiras e caixilhos e negro do xisto das paredes, onde o branco da igreja assume, não uma nota dissonante, mas o papel de solista neste grandioso espectáculo. Subimos as íngremes e apertadas quelhas (passo a redundância), lutando com o vento, com o frio, com a chuva, com as dores nos músculos das pernas, com o ofegante da respiração, com o acelerado do coração, não porque estejamos, necessariamente, fora de forma, mas porque é, realmente, íngreme, o que nos permite imaginar o quão dura seria a vida dos habitantes originais. Conquistado o cimo, tomamos posse da eira comunitária que coroa esta Rainha. Aos nossos pés, uma cascata de telhados de lousa parece aguardar uma enxurrada que leve todos os turistas que não se dignam passar do rés-do-chão e pensam que viram tudo ao visitar as lojas de recordações.
    Foz d’Égua é um topónimo tão curioso quanto o próprio local ao qual dá o nome: uma confluência de duas ribeiras, uma praia fluvial e casas de xisto que berram medievalidade e rusticidade a plenos pulmões.
     Já Chãs d’Égua deslumbra-nos pelas suas gravuras rupestres. Podem parecer, apenas, pedras com riscos, ou, melhor, neste caso, pontilhados e serem demitidas da nossa atenção pelo pouco que impressionam. Contudo, bem mais o contrário. Há milhares de anos, alguém se sentou em frente àquela pedra, o único suporte de que dispunha, e pontilhou, do único modo que sabia, o que lhe ia na alma ou na razão. Expressou algo de importante para ele e para a sua comunidade e é isso que nós tivemos o privilégio de desfrutar agora, observando uma delas.
     Este interregno pelo alcatrão acaba em mais um rasto deixado por uma cobra, encosta acima. Direita-esquerda e vice-versa, subimos e subimos e subimos, desvendando-se o vale lá em baixo a cada metro escalado até ao cume, chamado Portas d’Égua, onde passava uma estrada medieval cujos restos ainda registam o desgaste provocado pelos rodados das carroças nas suas lajes.
     Nesse cume, aguardavam-nos, novamente, as nuvens cerradas, o vento forte e o termómetro do carro a marcar 2ºC. Avançamos, equilibrando-nos no fio dos cumes da cordilheira com o algodão das nuvens espartilhando-nos cada vez mais. A visibilidade é tão fraca que os faróis parecem míopes. De tal modo que somos envolvidos pelo breu da noite sem darmos pela transição. Tampouco demos pela transição do Concelho de Arganil para o de Pampilhosa da Serra. Apenas quando iniciamos a descida se alivia o cinto de nuvens e começamos a lobrigar as luzes das muitas aldeias e povoados que se aninham nos refegos destes montes. Sem vivalma nas ruas que vamos atravessando, parece já noite alta, mas são só 7h da tarde. E é assim que entramos na Aldeia de Xisto de Fajão, para o jantar.
    Tendo desistido da observação de estrelas, acompanhados por profissionais, a meio da tarde, face à nebulosidade que se verificava e se previa para a noite, a inclemência do tempo decide dar-nos uma trégua e é com surpresa que, quando saímos do restaurante e decidimos caminhar aldeia acima, nos apercebemos das abertas no céu bem iluminado pela Lua Nova. Sobranceiros à aldeia e fora do perímetro iluminado, levantamos os olhos para o céu escuro e conseguimos identificar claramente as duas Ursas, Orion, Cassiopeia e a Estrela Polar, a tal do AzimuTTe Zero. Os nossos conhecimentos de astronomia dão para pouco mais. Em plena escuridão, damos com uma vereda algo manhosa que, descendo, nos traz de volta à Terra e à aldeia.
    Regressamos a Arganil por uma estrada tão sinuosa e constante de desníveis como os caminhos pelos quais rolámos todo o dia. Rasgamos a noite fria e escura com os nossos faróis, sem despertar as aldeias adormecidas. Há tempo para reflectir no dia que vivemos. Esta Serra do Açor é lindíssima em qualquer época do ano, mas, no Inverno, num dia como este que nos aprestamos a terminar, toda a sua agrestidade vem à superfície, uma misticidade envolve-nos, uma magia encanta-nos, uma beleza rude deleita-nos. Atrevemo-nos a ter a veleidade de imaginar a dureza da vida nestas faldas dos habitantes de antigamente, de antes das comodidades modernas de que desfrutamos actualmente. É com estas cogitações que cerramos os olhos para um sono reparador.

     Domingo
     Cá fora, céus pincelados em tonalidades de cinzento, vertendo água no ar frio da manhã.
     Não haverá lá dentro.
     A parte mais matinal da manhã é dedicada aos arredores de Arganil. Começamos pelo que se revelará, apenas, uma tentativa de visitar os vestígios de um acampamento militar romano na Lomba do Canho. Mato, mato e mais mato impede-nos de localizar as ruínas. Nem uma vedação que as defenda, nem um sinal que as localize. E que curiosidade nos tinha despertado a sua apresentação no Núcleo Arqueológico. Figurado balde de água fria, a juntar à água fria da chuva que insiste em não nos largar.
     Rumamos ao Santuário da Nossa Senhora do Montalto e que nome mais apropriado! Apesar de fechada a igreja (acabamos por nos conformar com os estranhos horários de funcionamento dos locais a visitar no Concelho de Arganil), o nome faz jus ao monte ou o monte faz jus ao nome. Pouco importa a ordem, a vista é soberba e o local convida a desfrutá-la.
    Junto ao portal lateral, no mural de mosaicos, a Nossa Senhora do Montalto parece querer oferecer-nos uma rosa. Agradecemos. É junto a ela que nos despedimos, planeando o próximo AzimuTTe, que as saudades com que nos separamos só têm paralelo na alegria com que nos encontramos.

Texto: Nuno Furet
Fotografias: António Marques, Bárbara Marques, Catarina Vale,
Celeste Carrasco, Idália Neves, João Veríssimo e Nuno Furet
 
Copyright 2015. All rights reserved.
Voltar para o conteúdo | Voltar para o Menu principal