AzimuTTe:
Myrtilis Iulia
20/21
de Abril de 2024
Descemos para o
pequeno-almoço às 7h,30. Lá fora, o sol ainda preguiçava, aconchegado nas
nuvens plúmbeas. Tal como elas, a nossa expectativa sobre o que o dia nos
reservava pairava no ar. O Alentejo espera-nos, melhor, chama-nos. E, nós
vamos.
Poder-se-ia
pensar que a ligação de 19km, por estrada, para o Pulo do Lobo, seria sem
história. De todo! Serpa mal desaparece nos nossos espelhos e já as manchas do
roxo rosmaninho e da margaça amarela, tornadas pintura impressionista pela
velocidade que levamos, cobrindo o suave ondulado dos montes, decoram os vidros
das nossas viaturas. Em cada curva ou entre elas, as perdizes passeiam-se. Os
instintos suicidas de algumas obrigam-nos a reflexos apurados para lhes
frustrar o intento.
O troço final
em terra que nos deixa no Pulo do Lobo como que nos foge de debaixo das rodas,
quando a encosta mergulha, acentuadamente, para aquele rasgo, que parece feito
por um lavrador embriagado com um arado gigante. Impressionante! Como seria
imponente o Guadiana selvagem, rugindo por aquela fractura estreita e sinuosa
abaixo, antes de domesticado pela Barragem do Alqueva!
Embrenhamo-nos
no Alentejo. Há algo que bule com a nossa percepção, quando deixamos de o
atravessar com a rapidez, o conforto e a segurança que proporciona o alcatrão e
optamos pelos caminhos de terra e estradões, que o cruzam em todas as
direcções. É, então, que nos deixamos embevecer ainda mais pelo tapete
aveludado que rodeia vetustos sobreiros e oliveiras isoladas, pontilhando
encostas e horizontes. O Alentejo não é mais aquela coisa monótona que se tem
de sofrer, quando se corre veloz para Sul, a caminho das praias do Algarve. De
algum modo, a diferença entre passar à porta de alguém sem parar ou, sequer,
reparar na casa ou parar e entrar. Lá estão as suas preciosidades, os seus
tesouros, ou, tão só, os seus objectos correntes que desconhecíamos. E tudo nos
maravilha. Ele é o Monte abandonado e tornado ruína, finda que foi a sua vida;
ele é o charco de água, natural ou artificial, que dessedenta animais; ele é a
árvore morta, cristalizada num último movimento; ele é a árvore viva de muitos
anos, que, com o vento, nos acena à passagem; ele é o gado, às vezes solto por
iniciativa própria; ele é o Monte recheado de alfaias agrícolas, que arrancam
do solo o sustento destas gentes; ele é o povoado, aldeia ou pequena vila, que
surge do nada para logo se esfumar no pó que levantamos.
E eis que
chegamos à Mina de São Domingos. Desenvolvida e modernizada pelos ingleses,
enquanto a exploração do minério foi rentável, abandonada e degradada após a
debandada daqueles, a vila apresenta-se-nos alva e aprimorada, no que é mais um
fôlego na sua já milenar existência. A mina, propriamente dita, parece saída de
um cenário pós-apocalíptico. Aguarda-nos um Agente de Animação Turística,
chamado pela Fundação que gere o espaço, para substituir o seu próprio guia.
Sem prejuízo para este último, que, de resto, nunca conhecemos, calhou-nos em
sorte um guia excepcional, com entrada directa para o nosso selecto Panteão de
excelentes guias. Há uma diferença enorme entre fazer as coisas com paixão e
apenas fazer, por mais simpatia que se empenhe. Nuno Roxo (e
permito-me mencionar-lhe o nome) transportou-nos, com uma
facilidade desarmante, para o auge da azáfama daquela mina e da sua vila e
trouxe-nos de volta para a realidade actual, mais além da que nos pintam e
vendem os panfletos turísticos e discursos oficiais. Só assim ficamos a
conhecer, verdadeiramente, o que visitamos e o acondicionamos na memória.
O almoço, no
relvado do Jardim dos Ingleses, foi aromatizado pelo agradável e adocicado
aroma das flores que floresciam, primaverilmente, no Lilás-das-Índias que,
gentil e desinteressadamente, nos proporcionava, em doses iguais, sombra e
frescura.
Mértola! A bela
Mértola! Com tanto para ver e ainda mais para aprender. E muito vimos e ainda
mais aprendemos. Seria fastidioso aqui detalhar o nosso périplo, muito bem
guiado, pelas várias épocas das quais resulta a Mértola que visitámos,
calcorreando-a de lés-a-lés, de ponta a ponta, subindo aos cimos e descendo aos
fundos (perdoem-me a redundância, mas os que estiveram presentes entendem-me).
Limito-me a parafrasear a legenda da fotografia, que ornava a fachada do Centro
de Estudos Islâmicos e do Mediterrâneo, em homenagem e reconhecimento ao homem
que ‘pôs’ Mértola a descoberto: ‘Obrigado, Cláudio Torres!’.
Quarenta
minutos de pausa bastaram para repousar as pernas, desfrutando o fim-de-tarde,
saboreando um dos famosos gelados Nicolau ou degustando etílicas beberagens
igualmente refrescantes, entremeados com compras de algum do artesanato nativo,
antes de nos despedirmos de Mértola do cimo do Cerrinho das Antenas e
almejarmos Almodôvar para a pernoita.
A trovoada e a
chuva, previstas pelos Serviços competentes, marcaram presença, mas só isso,
com uma hora de atraso face ao anunciado, ou seja, uns trovões, como quem
resmunga, enquanto se afasta, após vencido numa altercação, e uma mão-cheia de
isolados e grossos pingos, como que a mostrar o que poderia ser se às nuvens
lhes apetecesse. Isto para dizer que não nos afectou o soberbo alentejano
cozido de grão do jantar, nem, tão pouco, o domingo, que amanhecerá radioso e
sem vento.
E… amanheceu,
radioso e sem vento. E aí vamos nós, tomando terra, por terras de Almodôvar, na
direcção de Chadinha, Sarilhos, Maricota, Almarjão e, 2km depois, de Vale da
Rata, que a toponímia lusa é extremamente criativa. Por estas bandas, as moitas
de urze cobrem a paisagem e as suas flores, que ao perto se assemelham a ovos
estrelados, à distância, pintalgam de branco, quais flocos de neve perenes
extraviados, as encostas. Também o branco da margaça-de-inverno se junta ao
roxo rosmaninho e à margaça amarela pincelando-nos, ainda mais, o dia.
Mesas do
Castelinho: povoado fortificado da 2.ª Idade do Ferro (séculos V a I a.C) e
ocupado até à época Islâmica, é agora percorrido por nós, com a facilidade que
a sua recuperação e muito boa apresentação proporcionam. O dia mantém-se
radioso e sem vento, pelo que a caminhada pelos passadiços é muito agradável e
convida à descoberta.
Aproxima-se o
meio-dia quando regressamos a Almodôvar. O calor alentejano começa a fazer-se
sentir e é já com ele a bronzear-nos a pele que admiramos o Mineiro, os
Bombeiros e o Sapateiro, fantásticas esculturas de sucata, saídas da imaginação
e engenho do escultor Aureliano Aguiar.
Não menos
fantástico é o acervo do MESA - Museu de Escrita do Sudoeste-Almodôvar,
dedicado a essa escrita autóctone que tem fascinado estudiosos e visitantes e
que a ‘aula’ dada pelo arqueólogo que nos recebeu nos cativou para esta
temática desde as suas primeiras palavras. É, verdadeiramente, emocionante
estar em frente a estes pedaços da História da Humanidade. E estão no MESA, não
no British Museum. Quantas vezes temos a tendência a valorizar pela capa ou
pelo local onde vemos e menosprezamos o que é ‘pequeno’? Demasiadas, creio. São
pedras que chegaram até nós, testemunhando vivências que ocupam um lugar
muito sui generis na nossa gestação enquanto povo.
Foi com este
orgulho na bagagem, por descendentes dessa escrita, e a mente num torvelinho
por tudo quanto vimos e aprendemos, que rumámos a Norte e a casa. Mais um
AzimuTTe, mais um pedaço da nossa história desenterrado e do nosso território
desvendado.
Bem hajam
todos, participantes e excelentes guias. Os primeiros, pelo espírito de
descoberta e camaradagem, que são a base destes eventos; os segundos, pelo seu
profissionalismo e pela sua paixão, que saciam os primeiros.
Texto:
Nuno Furet
Fotografias:
António Marques, Bárbara Marques, Edite Cordeiro, Fernando Paixão, Helena
Paixão, Idália Loureiro, João Neves, João Veríssimo, Jorge Mota, Nuno Furet